Aurora
O silêncio da manhã estava diferente.
Não era o tipo de silêncio calmo, comum, de quem acorda em paz. Era um silêncio denso. Quente demais. Como se as paredes estivessem segurando um segredo. Como se a casa inteira respirasse por trás das cortinas.
Acordei com a luz filtrando por entre as frestas das janelas. Estiquei os braços devagar. A cabeça latejava, ainda sensível desde a queda. Mas era mais do que isso. Era como se meu corpo soubesse o que minha mente ainda não sabia.
Algo tinha acontecido.
---
Sentei na beira da cama. Estava vestindo uma camisola de cetim azul — outra das roupas que Elías mandara colocar no armário. Eu nunca pedi por elas. Nunca escolhi. Mas agora era tudo o que eu tinha.
Coloquei os pés no chão, sentindo o frio do mármore. Me aproximei da janela com cuidado. Lá fora, o jardim parecia igual. As flores intactas, os arbustos bem cuidados. O vinhedo ao fundo dormia sob o sol da manhã.
Mas... havia algo estranho.
Não havia pássaros. Nem vozes. Nem criados passando apressados.
Voltei para o quarto e peguei o roupão.
Abri a porta. Um rangido baixo. E o corredor...
Deserto.
Comecei a andar, os passos lentos, a pele arrepiada.
Foi quando vi o primeiro sinal:
Um pano jogado no chão. Manchado. Vermelho.
Sangue.
---
Meu estômago virou.
Segui em frente. O pano levava a um balde. Água tingida de vermelho. Um cheiro forte de cloro. E então, mais adiante, Carmen. De costas. Ajoelhada, esfregando o chão com força, como se quisesse apagar algo que não devia ter existido.
— O que aconteceu? — perguntei.
Ela não se virou.
— Foi apenas um acidente. Volte para o quarto, Aurora.
— Isso não é sangue de um acidente.
Ela parou. Os ombros tensos.
— Volte para o quarto.
— Foi ele, não foi? Elías matou alguém aqui dentro.
— Ele protegeu você.
Aquilo me fez engolir em seco.
— Me... proteger?
Ela se levantou devagar. Virou-se. Os olhos estavam fundos, cansados. Carmen sempre fora fria, mas hoje... ela parecia assustada. Como se tivesse visto mais do que podia aguentar.
— Homens invadiram a propriedade esta madrugada — ela disse, a voz baixa. — Armados. Vieram por você.
Meu coração parou por um segundo.
— Quem?
— Alguém que te comprou antes. Ou alguém que queria te vender de novo. Não sabemos. Só sabemos que não foi a primeira vez... e não será a última.
— E o que Elías fez?
Carmen deu um meio sorriso amargo.
— O que Elías sempre faz. Ele matou todos.
Fiquei em silêncio.
A palavra "todos" ecoou dentro de mim com o peso de um túmulo.
— Então... é verdade — sussurrei. — Ele é um monstro.
Carmen se aproximou. Me encarou com firmeza.
— Ele é.
Mas é um monstro que não deixa ninguém tocar no que é dele.
---
Fui até o andar de baixo. Ignorando os avisos. A mansão estava mais escura que o normal. As janelas fechadas. As portas laterais trancadas. O cheiro de sangue já havia sido encoberto por perfume amadeirado.
Quando cheguei à sala principal, Elías estava lá. Sentado. Na cadeira de rodas. Impecável como sempre. Terno escuro. Olhos cravados em mim como se já soubesse o que eu havia descoberto.
— Bom dia, nena.
— Você matou todos.
Ele não negou.
— Eu protegi você.
— Isso é proteção ou possessividade?
— Às vezes... é a mesma coisa.
---
Me aproximei, sentindo os olhos dele queimarem cada passo que eu dava.
— Eles vieram me levar, não é? — perguntei.
— Vieram.
— Quem?
— Paolo Moretti.
— E ele trabalha pra quem?
Ele não respondeu de imediato. Só apoiou os dedos nos braços da cadeira.
— Você quer saber se Dante mandou ele?
Assenti, com o coração batendo mais forte.
— Talvez tenha mandado. Talvez não. Mas o fato é que não importa. Agora você está aqui.
— Contra a minha vontade.
— Sim.
— Por quê?
Ele respirou fundo. E então, pela primeira vez, respondeu com uma honestidade que me fez estremecer:
— Porque o mundo lá fora quer te destruir, Aurora.
E eu quero apenas que você sobreviva… mesmo que seja dentro da minha prisão.
---
Fiquei ali. Parada. Olhando pra ele.
Um homem com a espinha partida e o coração corrompido.
Que não anda. Mas que comanda.
Que não toca… mas possui.
E, pela primeira vez, entendi que meu corpo ainda era meu.
Mas minha vida, não.
Ela pertencia ao monstro que matou doze homens numa noite.
Tudo… por mim.
Waiting for the first comment……
Please log in to leave a comment.