Aurora
Acordei com o cheiro de flores estranhas e uma pontada aguda na cabeça.
Demorei alguns segundos para entender onde estava. O teto alto, o lustre pesado, as cortinas de veludo, os lençóis limpos demais para qualquer hospital... e, principalmente, o silêncio. Aquele silêncio absurdo, como se o mundo inteiro tivesse parado do lado de fora daquela porta.
Tentei me sentar, mas um zumbido explodiu nos meus ouvidos. A cabeça latejou. As mãos tremiam.
Eu estava viva.
Ainda.
O que já era mais do que eu esperava depois do inferno da noite passada.
Foi então que ouvi a maçaneta girar.
Meu corpo travou.
A porta se abriu devagar, revelando uma mulher mais velha, morena, vestida como governanta de filme antigo. Ela carregava uma bandeja com chá, frutas e pão fresco.
— Bom dia, señorita. — disse com um espanhol suave. — O Don pediu que a senhorita fosse alimentada.
Don?
Meu estômago revirou. Eu estava numa casa de mafiosos. Isso era óbvio.
Mas quem era o Don?
— Onde eu tô? — perguntei, minha voz rouca, cortante. — Quem é você?
— Me chamo Carmen. E você está segura. Por enquanto.
"Por enquanto."
Palavras que nunca são boas.
— Quero sair daqui. Tenho o direito de sair daqui!
Ela suspirou e depositou a bandeja sobre a mesinha de canto.
— O Don vai decidir isso.
Levantei devagar, tonta, mas determinada.
— Eu não pedi ajuda. Não pedi abrigo. Não pedi nada!
— E, no entanto, está aqui — respondeu, com uma calma assustadora. — Recomendo que coma. Ele virá vê-la em breve.
— Quem é ele?
Ela hesitou. E então soltou, como se dissesse o nome de um deus da guerra.
— Elías Navarro.
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Depois que Carmen saiu, tentei abrir as janelas. Grades. Óbvio.
Tentei a porta. Trancada.
Corri até o banheiro, procurando qualquer coisa que pudesse servir de arma. Tesourinha de unha. Vidro do perfume. Cortei o dedo tentando quebrar o frasco. Nem doeu.
Estava mais preocupada com o que viria a seguir.
A mente corria. Eu precisava fugir. Aquilo era só mais uma prisão com paredes bonitas.
Quem era Elías Navarro? E por que diabos eu estava ali?
Minutos depois, a porta se abriu novamente. E o tempo parou.
Ele entrou.
Rodas deslizando no chão de mármore, o som metálico ecoando. A cadeira de rodas. O homem. A presença.
Elías Navarro.
O Don.
Ele não disse nada de imediato. Só me olhou. Aqueles olhos escuros, frios, analíticos. Não havia luxúria neles. Nem carinho. Era como se estivesse tentando decifrar cada célula do meu corpo.
— Gostou do quarto? — ele perguntou, com uma voz baixa, grave, calma demais para ser boa.
— Me tire daqui.
Ele ignorou.
— Está se sentindo melhor?
— Quero ir embora! — gritei. — Eu sou uma pessoa! Não um objeto! Você não pode me manter aqui!
— Você tem alguma ideia de onde está? — Ele cruzou os braços, sem se mover da cadeira. — Essa casa tem mais segurança do que uma base militar. Você está na fronteira do meu império. Ninguém entra sem ser visto. E ninguém... — ele inclinou levemente a cabeça — sai.
O desespero cresceu. Eu comecei a andar de um lado pro outro, puxando os cabelos, tentando controlar as lágrimas.
— Me diz o que você quer de mim. Dinheiro? Eu não tenho. Nem os meus pais têm mais. Eu fui vendida, por Deus!
— Eu sei.
Travei.
— Como assim... você sabe?
— Fui informado de tudo. Você foi leiloada. Comprada por Paolo Moretti. Um velho asqueroso que trabalha para Dante Vitale.
Eu me apoiei na parede. O nome "Vitale" fez minha pele arrepiar.
— Ele... é o culpado de tudo — murmurei. — Foi ele que destruiu minha família. Ele armou a falência. Fez meus pais me venderem...
Elías observava. Silencioso. Como se cada palavra minha fosse parte de um quebra-cabeça.
— E agora? — perguntei. — Vai me entregar de volta pra eles?
Ele deu um meio sorriso, sombrio.
— Não.
Meu peito se apertou.
— Então o que vai fazer comigo?
— Você fugiu de um dono. E caiu direto nos braços de outro.
— Eu não sou propriedade de ninguém!
— Isso não depende de você.
Me aproximei, com os punhos cerrados, o sangue fervendo.
— Por que eu? — sussurrei. — Tem milhares de mulheres nesse mundo. Por que eu?
Os olhos dele escureceram ainda mais.
— Porque você é bonita demais para ser desperdiçada com homens fracos. Porque caiu no meu território como um presente dos deuses. E porque… — ele se inclinou, voz baixa — eu quero você.
Senti o chão sumir.
— Você está numa cadeira de rodas. Não pode nem me impedir de sair daqui.
Foi c***l. Mas eu queria machucar. Queria ver uma reação.
Ele não tremeu. Não mudou o tom. Só sorriu.
— E mesmo assim… você não vai conseguir fugir.
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Naquela noite, planejei tudo.
Esperei a porta destrancar. Esperei a luz apagar no corredor. Peguei o abajur, quebrei, peguei a ponta mais afiada da cerâmica.
Desci correndo as escadas, descalça, com o coração na garganta. Mas quando alcancei a entrada...
— Você realmente achou que eu deixaria a porta destrancada por engano?
A voz veio de cima.
Ele estava lá. Na cadeira. Observando.
E atrás de mim... três homens armados.
— Leve ela de volta para o quarto — ordenou, sem levantar a voz. — E trancem com duas trancas. Ela ainda não entendeu onde está.
Fui carregada como um animal, chutando, gritando, chorando.
E naquele momento, percebi a verdade mais c***l:
Eu não estava sendo mantida ali à força.
Eu estava sendo domada.
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